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sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Vidas encarceradas: o cotidiano dos agentes penitenciários paulistas

Vidas encarceradas: o cotidiano dos agentes penitenciários paulistas

31/07/2014

Conheça o sistema prisional a partir dos relatos dos guardas do cárcere

Escrito por: Andréia Coutinho, Nathan Xavier, Guilherme Oliveira e Vanessa Ramos

Ilustração especial para a reportagem do sistema prisional - Vitor Teixeira
Ilustração especial para a reportagem do sistema prisional - Vitor Teixeira



Matéria publicada originalmente no site do portal Ponte


No sistema prisional paulista trabalham 35.803 funcionários. Desses, 23.653 são agentes penitenciários. Os dados são da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo (SAP), que não forneceu informações a respeito de facções criminosas ou mesmo sobre o número de trabalhadores que adoeceram ou se aposentaram no último período. Esses e outros questionamentos foram enviados à secretaria durante a construção do livro que produzimos: “Vidas Encarceradas
 – Trabalho e Cotidiano dos agentes penitenciários de São Paulo”.



A partir da convivência com esses trabalhadores e seus familiares,
 a proposta da reportagem é olhar para dentro das prisões e descrever
 o sistema prisional sob a ótica de personagens anônimos, que não entraram
 para a história oficial, mas são peças cruciais na engrenagem das penitenciárias
 paulistas. Foram escolhidos diferentes agentes, que falam sobre rebeliões,
 facções criminosas, ameaças, convivência familiar, saúde no trabalho e
 uma série de outras questões que permeiam o sistema prisional. O nome
 dos trabalhadores, presidiários e familiares, contudo, são fictícios para manter
a identidade e segurança. Um desses personagens, agente penitenciário, é Guaracy
 que, há cinco anos, junto da esposa e dos filhos, compreendeu de fato quais são os
desafios e as ameaças da profissão. Conheça sua história:





Segunda Morada


Dez da manhã: o cheiro é úmido, o ambiente suspeito e o calor insuportável.
 Bastam seis meses de trabalho num presídio para passar a conviver com isso
e começar a usar todos os tipos de remédios para a cabeça não pirar. Depois
de anos em uma cadeia, o lamento de um carcereiro vira um verdadeiro drama.
Isso é o que se imagina, mas Guaracy é uma exceção. No dia a dia ele costuma
 brincar com os presidiários: foi a forma que encontrou para sobreviver e fugir
dos dias tediosos do outro lado do muro.




O agente penitenciário é o trabalhador que diariamente cumpre a missão de manter
em custódia pessoas transgressoras. Pode ter contato com indivíduos que
 cometeram crimes leves, como pequenos furtos, ou com outros mais perigosos,
 os acusados de assassinato, líderes do tráfico de drogas, sequestradores ou
estupradores. Ele convive também com gays, travestis e transexuais, população
que, muitas vezes, precisa ser colocada em uma ala específica dentro do presídio
 para evitar violência, abuso e até mesmo morte. “O que eu dou mais risada na
cadeia é os ‘preso’ um casando com o outro”, ri de forma tímida Guaracy,
 já na meia-idade.




O guarda arrasta com dor uma das pernas e, às vezes, reclama ao andar ou
quando permanece muito tempo sentado. No passado, alguns médicos já lhe
 disseram que ansiedade, estresse ou falta de atividade física regular eram hipóteses
 para explicar o que sentia. Os remédios ajudaram a amenizar um pouco as reclamações.
 Os quase 20 anos de trabalho na mesma função deixaram sequelas crônicas ao
descer e subir escadas com os jumbos – os alimentos que chegam ao presídio
 em pacotes pesados.




Guaracy segue a vida como um trabalhador comum, ainda que seja discriminado
pelos vizinhos e familiares que sabem com quem ele se relaciona todos os dias.
É um homem que carrega o pesar da indiferença contando, para disfarçar, uma
ou outra piada guardada na manga da camisa social com a qual costuma se vestir
 de segunda a domingo.




Esperançoso, tem a crença de que a mudança do sistema carcerário é possível,
 ainda que sejam escassas as suas ilusões sobre a vontade política dos governantes.




Com olhar atento, observa o horizonte e saca três ou quatro sorrisos ao
 lembrar-se das situações com as quais aprendeu a conviver. “Eu chego lá e
 digo: – Olha, hoje já vou desmanchar um casamento por aqui se tiver briga. Quero
ver quem vai ficar de cara feia, hein?”. Segundo o agente, os homens chegam ao
 presídio sem ter com quem ficar ou se satisfazer sexualmente. “Alguns acabam
casando com uma bicha. Então o cara chega machão, vira bicha e o bicha vira machão”.




O presídio é assim. Não é só de ódio que se alimentam os corações nas celas e
nos pátios. Histórias de ciúme e de amor dentro dos presídios masculinos não
 faltam, e os guardas são os observadores e, ao mesmo tempo, os interlocutores
 entre o mundo de dentro das grades e o de fora.




Numa tarde um pouco animada, um preso heterossexual, alto e loiro, chegou
para ajudar na limpeza, escalado para a tarefa pelos agentes, com mais doze
presidiários. Era forte, carregava um carrinho no qual os outros sentenciados
jogavam o lixo recolhido. Eles limpavam uma área com quatro celas, cada uma
 com três ou cinco travestis. Tanto Maitê – era assim que o travesti Ariovaldo
gostava de ser chamado – como os demais ficaram estarrecidos com a beleza
 do “loirão”. Guaracy logo percebeu e tratou de brincar com o presidiário alemão,
que imediatamente se colocou como um “homem com H maiúsculo” e disse não
gostar dessas coisas. “Não entro mais nesse raio, não. Tenho mulher e filha, ô
raça desgraçada”. Depois de duas horas do episódio, um dos paqueradores
apareceu com o supercílio aberto e a roupa rasgada.




O agente quis saber o que significava aquilo. “Meu marido me bateu porque
eu mexi com o loirão aí”, respondeu Maitê.

Sobrou para Guaracy levar um para a enfermaria e o outro para o porte
 (pavilhão disciplinar), conta o agente que também acontecem cortes no pulso
 e tentativas de enforcamento quando o namorado leva bonde – momento em
 que é transferido para outra cadeia. “Isso é cômico, mas é triste”, diz o agente.




A Penitenciária 1 (P1) de Presidente Venceslau, que fica a 630 quilômetros
da capital paulista, é a segunda morada do guarda.




Quinta e sexta são os dias em que ocorrem a faxina nos raios e os presos são
 divididos para ajudar. No espaço ocupado pelos travestis, gays e transexuais,
 existe uma rotina diferenciada. “Tem uns lá que têm uns peitos muito grandes.
Faz muito calor e elas são tão filhas da puta que deitam, pegam a cueca, levantam e
 fazem que nem fio-dental, e fica tudo com a bundona pra cima. E aí me perguntam: – E aí, seu Guaracy, como é que eu tô? Meu sonho é passar a faca nisso daqui, ó”. “Daí eu falo: manda seu parceiro passar a faca aí, ó, se tiver coragem”.
Arte: Vitor Teixeira
Arte: Vitor Teixeira




Mesmo com tantos anos de sistema prisional, Guaracy ainda se surpreende com o que vê. Certo dia, um novo travesti foi transferido à P1. O guarda pouco se conteve. Os anos de trabalho em presídio o ensinaram a se divertir de vez em quando, o que o ajuda a esquecer o medo, as ameaças e o clima de desconfiança comum nas cadeias de qualquer lugar do mundo.




“Mas era feio, muito feio! Eu só disse assim: que porra é essa aí? Um coque com cabelão estranho. Rapaz, de que nave você caiu?”, perguntou Guaracy, no momento em que percebia a vontade dos presos de rir, embora se contivessem a todo custo.



O preso havia chegado de um Centro de Detenção Provisória (CDP). De acordo com a Secretaria de Administração Penitenciária, há no Estado de São Paulo dessas unidades que recebem os presos que esperam julgamento em regime fechado.




“Você veio da onde, ô coisa linda?”, ele tornou a perguntar. Nesse momento, os presos ao redor não aguentaram. “Âe, seu Guaracy, é coisa linda é?”, diziam às gargalhadas.




Apesar de o artigo 5º da Constituição Federal afirmar que todos são iguais perante a lei, a violência contra os homossexuais se manifesta de diferentes maneiras. Ela varia desde uma piada com ofensas verbais até a agressão física. Segundo um relatório da ONG internacional Transgender Europe, o Brasil lidera o ranking de mortes. Entre janeiro de 2008 e abril de 2013 aconteceram 486 assassinatos de travestis e transexuais no país.




“Isso aqui é o capeta chupando manga e de ponta-cabeça”, disse o guarda, enquanto pedia ao novo travesti que chegava a Presidente Venceslau que tirasse a roupa. Olhando para os seios do sentenciado, tornou a questionar: “Que desgraça é essa?”.




O preso explicou que havia ido a uma clínica para aplicar silicone nos seios e que o procedimento não havia dado certo. O agente observava que um seio estava na parte de cima e outro na parte de baixo. Enquanto isso, outro funcionário 70 chegava com a máquina para cortar o cabelo comprido do recém-chegado.




O travesti chorou muito, debulhou-se em lágrimas ao ver o cabelo sendo cortado. Nos presídios, o corte de cabelo era obrigatório e o uso de maquiagem, unhas compridas e roupas íntimas sempre foi proibido, tanto para homens como para mulheres.




De acordo com Guaracy, essas situações costumam abalar o psicológico dos travestis e transexuais. “O senhor não sabe quanto tempo demorou para eu deixar o cabelo desse jeito. O senhor guarda pra mim?” – perguntou para o agente, que atendeu ao pedido.


O agente quis saber com o que ele trabalhava. O novo preso fazia programas à noite. “Desculpa a expressão, mas o cara que comia você não gostava do próprio pau, hein?”, ironizou. Mal havia chegado e já ouvia no presídio aquilo que era comum escutar em supermercados, shopping centers e padarias. “O senhor sabe que pode ser processado, né? Eu tenho meu ‘adevogado’ e posso fazer isso. E mais, eu vou falar um negócio para o senhor, eu tenho um namorado na rua que tem muito dinheiro, viu?”, respondeu o travesti com firmeza.




O agente parou de falar e deixou o tempo provar. Passado um mês, chegaram o irmão e o namorado rico do presidiário. O guarda ficou surpreso ao perceber o romance. “Na cadeia a gente vê de tudo. Por isso nós brincamos para descontrair um pouco, senão o preso chapa e a gente chapa junto”.




Em 31 de janeiro de 2014, uma resolução da Secretaria de Administração Penitenciária (SAP), assinada pelo secretário Lourival Gomes, estabeleceu algumas normas diferenciadas para os homossexuais, como o direito de serem chamados pelo nome feminino que escolheram para si. Também será permitido o uso da roupa íntima e os cabelos poderão ficar na altura dos ombros.




Copo, prato e talheres separados


Amigo de Guaracy, Cássio está no sistema prisional há 13 anos. Atuou em diferentes presídios, mas hoje trabalha no CDP de Capela do Alto, na região de Sorocaba. O Centro foi inaugurado em março de 2013, em um complexo que abriga também uma penitenciária. Cada unidade foi construída para abrigar 768 presos.




Em março de 2014, o CDP já estava com 1.380 sentenciados, 612 pessoas a mais do que a capacidade. O complexo faz parte de um plano de expansão do governo de São Paulo para atenuar os problemas dos acusados que estão presos em cadeias, mas que deveriam estar em unidades provisórias até a sentença final da Justiça. A unidade onde Cássio atua tem um número pequeno de gays e travestis, mas há celas diferenciadas, assim como os copos, canecas e colheres dos homossexuais são separados dos demais utensílios. “Pode ser por causa da aids, mas é mais do que isso, é cultural”.




Em 2002, o médico Drauzio Varella apresentou no livro Estação Carandiru os resultados de uma pesquisa realizada na década de 90. De 82 travestis examinados na antiga Casa de Detenção, 78% eram portadores de HIV. Dentro desse percentual, todos com mais de seis anos de cadeia carregavam o vírus.




Cássio certa vez encontrou uma carta dizendo que um dos presos, num momento de fraqueza, bebeu além da conta e beijou um travesti. Isso foi motivo para que ele passasse, a partir de então, a ter também seus talheres e copo separados. “É uma coisa escrota, mas estamos acostumados a ver”, ri o guarda.




O ex-presidiário Luiz Alberto Mendes, colunista da revista Trip, chegou a comentar sobre o assunto, em janeiro de 2011, no artigo O Homossexualismo, a Prisão e o Preconceito. Ele ficou preso por homicídio e outros crimes durante 31 anos e dez meses, mais do que a pena máxima permitida pela Justiça brasileira, que é de 30 anos. Entre seus escritos está o livro Memórias de um Sobrevivente. Amante da literatura, Luiz relata que quando chegou à prisão a homossexualidade era presente e que teve de matar para continuar sendo dono do próprio corpo, pois não havia visita íntima. Os jovens eram sinônimos de objeto sexual e muitos eram perseguidos e estuprados.




As divisões de espaço foram construídas ao longo do tempo, mas o pior sempre acontecia com os passivos na relação. Segundo Luiz, os homossexuais “foram segregados a uma prisão dentro da prisão: a prisão do preconceito. Vivem em separado e duplamente penalizados pela sociedade e pela massa carcerária”.




Guaracy e Cássio testemunharam histórias parecidas e já trocaram muitas risadas sobre contos de presídio. Em uma penitenciária perto de Sorocaba, numa cadeia específica para crimes sexuais, a história de um rapaz de 20 anos permanece na lembrança e nas rodas de cerveja dos guardas quando estão fora da prisão. Na cadeia, os que chegam têm ao menos duas opções: descambar para a criminalidade ou tentar se esconder atrás da Bíblia. O jovem escolheu a religião e, devoto, frequentava o culto evangélico toda semana na prisão. Tudo era de se esperar, menos a conversão do pastor, que deixou de ser ministro do Evangelho para se casar com o menino e passar a morar dentro da mesma cela. “O pastor tentou colocar a malandragem na linha e acabou se bandeando para o lado da bicha”, comenta Cássio, entre um copo e outro.




Como os presos homossexuais dentro da prisão, o antigo pastor passou a ser alvo de piadas e também teve seu copo, prato e talheres separados.


Navalha diária




Guaracy classifica a Penitenciária 1 Zwinglio Ferreira, de Presidente Venceslau, onde trabalha, como a que segura o


Arte: Vitor Teixeira
Arte: Vitor Teixeira
 Estado de São Paulo. É um lugar de castigo, segurança máxima. Ali existem quatro raios, que são as divisões internas. 



No três e quatro, vivem as lideranças do Primeiro Comando da Capital
 (PCC). No raio dois está um pessoal mais neutro, que não faz parte de
 nenhuma facção e que cozinha tanto para o presídio como para o CDP
 Tácio Aparecido Santana, em Caiuá, cidade de nome indígena localizada a
18 qui-lômetros de Presidente Venceslau. Cada grupo ocupa uma cela. Eles
não se misturam. No raio um, está uma série de facções, como ex-integrantes
 do PCC, gente do Comando Revolucionário Brasileiro da Criminalidade
(CRBC), do Terceiro Comando da Capital (TCC) e também de um recente
grupo criminoso chamado Cerol Fininho, que tem como prática decapitar os
 inimigos. Sete pessoas foram mortas em 2013, pelo Cerol Fininho, segundo
 noticiou o jornalista Josmar Jozino.




Cerol Fininho é uma referência às linhas de pipa que, na mistura com
caco de vidro picado e cola de madeira, cortam como lâmina afiada,
 como se fossem um bisturi na mesa de cirurgia.




“No final do ano passado, mataram um preso lá em Andradina, arrancaram
a cabeça, abriram o tórax e tiraram a língua e o coração. Ficamos sabendo
 que abriram a barriga dele e costuraram a cabeça lá dentro. É dureza”, lembra
 Guaracy. O preso era um jovem de 28 anos, Anderson de Castro Moraes Borges,
que carregava no braço direito tatuado o nome de Cristiane, talvez filha, mãe ou
esposa. Foi morto no dia 28 de novembro de 2013.




A nova facção nasceu no presídio Dr. Antônio de Queiróz Filho, na cidade de
 Itirapina, interior paulista, a 212 quilômetros da capital. “O governo de São Paulo
 chamava a gente de mentiroso, mas o Cerol Fininho tem crescido e já é uma
realidade”, relata Guaracy.




O guarda afirma que os integrantes do novo grupo já somam 500 pessoas,
 espalhadas em Presidente Venceslau – para onde alguns foram transferidos
 –, Guareí, Andradina, Presidente Bernardes, Presidente Prudente, Sorocaba
 e outras cadeias na região metropolitana de São Paulo. “Alguns conflitos
 envolvem homens que foram expulsos do Primeiro Comando da Capital
. Esses caras querem o sangue do PCC”.




O líder do Cerol Fininho está em Presidente Bernardes. O dirigente do grupo,
cujo apelido é Lúcifer, nunca pertenceu ao PCC. Guaracy conta que ele é muito
 magro, alto e tem cerca de 30 anos. “Na aparência, ninguém dá nada para ele,
 mas é quem comanda. Luta até artes marciais.” Os participantes do Cerol Fininho,
 segundo o agente, praticam rituais satânicos depois dos assassinatos e servem
 como oferenda ao diabo o sangue das vítimas.




“A facção”




Guaracy conhece a jornalista Fatima Souza há anos. Repórter da Rede Record,
 foi a primeira pessoa a falar, em 1995, do Primeiro Comando da Capital, quando
 trabalhava na TV Bandeirantes. Ela teve contato com os primeiros chefões, José
Márcio Felício, o Geleião, e César Augusto Roriz da Silva, o Cesinha – morto
em 2006, em Avaré (a 262 quilômetros de São Paulo), com uma lança feita de madeira.




Em 1997, o governo não só a ignorou como também desmentiu publicamente
a notícia. O então secretário estadual de Administração Penitenciária, João
 Benedito de Azevedo Marques, chegou a dizer que a denúncia era uma
“balela” e uma “ficção”. O tempo provou que não era bem assim. “O governo
 ainda tenta abafar a atuação do crime organizado”, diz Guaracy.




Depois de alguns meses, quando as rebeliões começaram a eclodir em algumas
 cadeias e a facção se apresentou, outros jornais passaram a dar visibilidade ao
 fato. Uma matéria especial entrou no Fantástico, da Rede Globo, mas sem da
r o crédito à Band na época.




No livro PCC – A Facção, Fatima relata como o PCC se tornou conhecido
pela imprensa, pela sociedade e pelo governo. Os bastidores de ações coordenadas
 pela facção, como rebeliões, fugas, atentados, sequestros e roubos, são também
 apresentados. Eventos como o sequestro do irmão da dupla sertaneja Zezé Di
 Camargo e Luciano (dezembro de 1998), o assassinato do prefeito de Santo
 André, Celso Daniel (janeiro de 2002), o assalto ao Banco Central, no Ceará
 (agosto de 2005), e a famosa onda de terror que parou São Paulo e cidades
 vizinhas, em maio de 2006, são alguns dos acontecimentos que o PCC coordenou.




Por manter contato por cartas e telefone com as lideranças, a jornalista ficou
 por dentro dos detalhes de ações de autoria da facção, inclusive rebeliões e
 atentados a agentes penitenciários, e de aspectos da vida, e do fim da vida, de
 alguns líderes e membros do partido.




Fatima leva à boca o sexto cigarro em pouco mais de duas horas antes de falar
 sobre a situação dos agentes penitenciários de São Paulo, sentada na sala de sua
casa, no Jaguaré. Para ela, “a morte é uma consequência, como a doença e o medo”
. Em outro momento, ao falar sobre o cotidiano do guarda prisional, ela diz que “a
 alma desses trabalhadores vai sendo perfurada aos poucos, afinal, conviver
com bandidos diariamente têm suas consequências”.

O agente aposentado Sidnei Oliveira teve o apoio de Guaracy quando adoeceu
 no sistema prisional. Ao falar sobre as diferenças dos envolvidos nas facções em
São Paulo, ele diz que os membros do PCC costumam ser mais pacatos e fechados
 no dia a dia. “Eles mais tramam do que falam.”




Segundo informações da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Sistema
 Carcerário, de 2009, “as organizações possuem rígida hierarquia e, como uma
empresa, no topo vem a chefia, abaixo os sub chefes e, na base, os chamados de soldados”.




O crescimento do PCC ao longo dos anos foi um dos fatores que exerceu grande
 influência no cotidiano dos agentes penitenciários. O escritor Drauzio Varella relata
no livro Carcereiros, de 2012, que o crime organizado dentro das prisões
caracterizou uma “inversão de papéis” entre agentes pe-nitenciários e presos.
 Para ele, o Massacre do Carandiru, que aconteceu no dia 2 de outubro de 1992
 e deixou 111 presos mortos (número oficial), executados pela Tropa de Choque
da Polícia Militar na Casa de Detenção de São Paulo, foi um “divisor de águas na
 história das cadeias paulistas”. Os assassinatos mancharam ainda mais de sangue
a história da política carcerária que é aplicada no Estado paulista.




A casa de Guaracy




Por trás das portas de vidro e de madeira, foram instaladas grades de ferro.
 Os horários foram combinados para ninguém sair sozinho de casa. Olhar para
 os lados era regra básica para saber se estavam sendo seguidos. Três cães da
raça rottweiler e um da raça fila passaram a conviver com os filhos e a esposa.
Durante um ano e seis meses, a família deixou os quartos para dormir na sala,
com colchões amontoados, uma forma de diminuir os dias de medo.

A família vive uma parte do tempo na capital e outra no interior, em Presidente
 Venceslau. O agente trabalha no sistema há quase 20 anos, mas foram os últimos
cinco anos que fizeram com que esposa e filhos compreendessem, de fato, os
desafios e as ameaças da profissão. “A maior vitória do agente penitenciário é
 chegar em casa vivo”, diz a esposa.




A primeira invasão ao sobrado de Guaracy foi em uma quarta-feira de agosto de
2009. Os dois filhos dele sempre ficavam na varanda para buscar wi-fi no bairro,
 na arte de compartilhar a internet de algum vizinho. O filho mais novo ficara durante
todo o dia na sacada. Havia percebido intensa movimentação de carros, mas nada que
 o fizesse desconfiar do que aconteceria horas depois.




No começo da tarde, Guaracy estava no litoral paulista. Seria testemunha de
uma agente penitenciária que estava presa. Segundo ele, as informações e
provas que tinha em mãos poderiam mudar o rumo do julgamento, mas,
na última hora, preparado para falar, com camisa social engomada e calça
alinhada, foi impedido de depor. Teve de voltar para casa.




Perto das 19 horas, Guaracy já estava em casa. Ele e a mulher levavam até
 o portão um casal de amigos que acabavam de tomar um café na casa da família.
“Percebemos que veio um carro descendo a nossa rua. Quando chegou à frente do
 portão, eles pararam e ficaram olhando pra gente. Eram dois homens, mas não me
 lembro das características. Quando eles perceberam que a gente estava atento,
eles foram embora”. O casal fechou o portão, foi jantar e depois subiu para dormir.




O filho permaneceu onde estava durante o dia, na sacada, apagou todas as luzes e
ficou navegando na web. No início da noite, a filha mais velha foi para o segundo
 andar dormir, pois estudava cedo.




A esposa de Guaracy é muito devota. Frequenta a igreja toda semana, acredita
em revelação divina e em sexto sentido de mãe. “Eu estava cochilando quando
 ouvi uma voz dizendo: – Manda seu filho entrar porque senão ele vai tomar um tiro.
 Nesse momento, olhei para um lado e para o outro, estava tudo escuro”.
Ela desceu as escadas e disse para o filho entrar e trancar todas as portas e
janelas que estavam abertas.




Era quase meia-noite. Passados 15 minutos, eles ouviram um barulho que se
alastrou pela casa, quase sem móveis. “Parecia uma pilha de pratos que havia
sido jogada no chão”, diz a esposa. Os filhos correram para o quarto dos pais
. Eles gritavam que a casa estava sendo invadida e pediam socorro.




O barulho era de chave de fenda. Não se sabe como os invasores conseguiram
quebrar alguns vidros e a porta de madeira da sacada. A família ouvia tiros. A
 segunda porta, eles não conseguiram abrir. “Não deu pra ver, eu não vi. Mas
 teve vizinho que viu. Eram três caras encapuzados. Eles subiram, quebraram os
 vidros e atiraram. Deve ter sido para amedrontar, porque eu seria testemunha
naquele dia”, declara Guaracy.




As crianças foram trancadas no quarto. Guaracy ligou para a polícia. Um carro
 e uma moto saíram correndo, disparando tiros. Alguns rapazes que usavam drogas
na rua de baixo relataram depois que os homens encapuzados disseram que era para
eles saírem de
 onde estavam porque, senão, todos morreriam. “Corremos tanto dentro da
casa, de um lado para o outro, que talvez até os bandidos tenham tido medo.
Talvez tenham chegado a pensar que fôssemos atirar neles”, pontua o filho mais novo.




Até hoje, a família narra com estranheza o que aconteceu depois da invasão.
A polícia demorou dez minutos para chegar até o local. Foram em sete viaturas.
Alguns policiais recolheram vidros quebrados, chave de fenda e cápsulas de bala
de revólver. Tentaram acalmar a família dizendo que eram apenas ‘noias’ (drogados),
levaram as provas e não fizeram Boletim de Ocorrência.




Ninguém conseguia dormir logo depois da invasão. Ficaram preocupados de que a
 história viesse a se repetir. Guaracy tentou dizer que não deveria ser nada demais.
Era a forma que encontrava para acalmar os filhos e a esposa. Depois de uma hora e
 meia, houve a segunda invasão. Os encapuzados voltaram até a casa. “Vieram metendo
o pé e quebrando tudo de novo.” Em poucos minutos foram embora.




A família tornou a ligar para a polícia, que demorou, desta vez, sete minutos, contados
 no relógio. Quinze carros da Força Tática, com metralhadora, fecharam a rua. Nenhum
dos policiais disse ter cruzado com os bandidos, em um bairro minúsculo, com ruas
 pequenas. Eles sugeriram retirar a família de lá. Mas a família decidiu ficar. Naquela
madrugada, as invasões acabaram.




Depois de tudo, a filha mais velha começou a ter ânsias de vômito constantes.
 “Meu pai tem um jeito de fazer as coisas como se dissesse: ah, pode vir,
tenho peito de aço. Mas não é assim. O nosso maior medo era que ele
 morresse, fosse assassinado na nossa frente.”




Uma semana depois, eles perceberam que eram seguidos. Ficaram alguns
dias na casa de familiares para se refugiar. O filho mais novo sofreu um
choque pós-traumático, começou a tomar remédios controlados.
“Qualquer moto que passava do nosso lado, abria um buraco dentro
da barriga”, conta a esposa.




A família costumava alternar o caminho até a residência. Uma noite voltavam, de carro,
 de São Bernardo do Campo (SP). Todos olhavam para os lados. Estavam quase
 perto de casa e um silêncio tomava conta da rua. Ao dobrar uma das esquinas
viram um homem correndo e, logo depois, um carro passou a persegui-los.
Guaracy acelerou o máximo que conseguiu, mas o carro chegou próximo.
“Do nosso lado, homens apontavam o revólver”, conta o filho. Eles continuaram
 correndo quando o motorista de um ônibus coletivo viu a situação e jogou o veículo
no meio dos carros. Guaracy conseguiu fugir. Um carro Monza verde e um
Audi vermelho foram os carros vistos nos dias da semana e na perseguição.




Com medo, mas por insistência de um amigo que já havia passado por situação
 semelhante, todos foram convencidos a fazer o Boletim de Ocorrência, que não
 havia sido incentivado pela PM. Depois disso, foram escoltados pela polícia
 por seis meses. Nada mais aconteceu, mas a vida da família se transformou.

Arte: Vitor Teixeira
Arte: Vitor Teixeira
403 comprimidos por mês






Alprazolam é um remédio de tarja preta. Ele serve para depressão, em especial quando envolve ansiedade. Segundo boletim da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, lançado em janeiro de 2012, esse remédio esteve entre as substâncias controladas mais consumidas pelo povo brasileiro entre 2007 e 2010. De acordo com o Relatório de Comercialização do Sistema de Acompanhamento de Mercado de Medicamentos (Sammed), enviado pelas empresas à Agência Nacional de Vigilância Sanitária, apenas em 2013 foram vendidas 10.480.047 caixas desse ansiolítico nas farmácias do país. Uma das unidades foi comprada pelo agente penitenciário Guaracy, em São Paulo.




No final de 2013, junto a esse medicamento controlado, mais 12 remédios
 diários foram recomendados ao guarda por uma médica do Instituto de
Assistência Médica ao Servidor Público Estadual (Iamspe). Nos meses
com 31 dias, ele chega a tomar 403 comprimidos. Aos poucos, tenta diminuir a quantidade.




Guaracy continua na ativa. Trabalha 12 por 36 horas na unidade em Presidente
Venceslau. Na prisão, já viu de tudo um pouco. As piores cenas guardadas na
 memória são dos dias em que as “cadeias viraram”, momento em que os presos
 promoveram rebelião ou motim.


O ano de 2005 esteve entre os piores para o agente. Com experiência na área,
Guaracy foi convocado para acompanhar rebeliões e, quando necessário, negociar
com os presos. Em doze meses, 27 rebeliões foram registradas pelo sistema prisional
em todo o Estado. Uma delas aconteceu nos dias 10 e 11 de maio, em Presidente
 Prudente. Na rebelião, 22 trabalhadores do sistema prisional foram feitos reféns.
 O presídio, com capacidade para 540 presidiários, abrigava, à época, 708.
“Por causa dessa rebelião, tem funcionário que passa hoje em frente da cadeia
 e tem diarreia. Começa a passar mal de tudo quanto é jeito. Tem muitos
que ficaram sem dormir por semanas”, diz Guaracy.




Em outro presídio, houve mortes e funcionários sofreram agressões. Os
 sentenciados quebraram telhados, colocaram fogo nos colchões e
 depredaram toda a estrutura da cadeia. Na hora de negociar, Guaracy
conta que um dos líderes da rebelião chegou até ele com duas cabeças
que pingavam sangue. “Senhor, esses aqui são os primeiros. Daqui a pouco
vamos trazer mais três”, dizia o preso, com a cabeça dos presidiários nas mãos.
O agente lembra que, do lado de fora, ouvia gemidos dos colegas de profissão
 que apanhavam. Muitos depois relataram que tiveram as bocas amarradas
 com panos. Os presos eram assassinados enquanto os guardas, reféns,
 assistiam ao espetáculo. O saldo final foi de cinco mortes – três vítimas
 tiveram a cabeça cortada e pendurada, uma teve o corpo todo serrado e
 a quinta foi morta e depois queimada. Nenhum fun-cionário morreu nessa
rebelião, mas Guaracy não se esquece de nenhum detalhe. “Eu fiquei com
aquele cheiro de carne cozida do preso que foi queimado por muito tempo”,
 lamenta.




No mês de julho, dois meses depois, Guaracy sofreu um derrame que paralisou um dos lados do corpo. Quem relata isso é a esposa do agente, pois essa é uma das histórias sobre a qual ele não gosta de falar. Demorou muito tempo para que o guarda pudesse se recuperar, mas quem não sabe dessa histó-ria mal pode acreditar que seja verdade. O agente, apesar das dores na perna e na coluna, voltou ao normal.




Guaracy não é uma exceção. Tem amigos que se afastaram ou se aposentaram no sistema por causa do trabalho. Um deles é o agente de segurança penitenciária Lucas Carvalho, que, em 2014, completa 15 anos na área. Atualmente, está afastado há três anos por problemas psicológicos. Com filha e esposa em casa, ele diz que depois de ter trabalhado em presídio nunca mais conseguiu ser o mesmo. “Eu costumava conversar, sair, passear. Ia para as missas, mas não vou mais. Os dias que eu tô ruim mesmo, me afasto e me fecho no meu lugar. Não sei, é uma tristeza que está dentro da gente”, ele explica a dor, ao olhar para o chão dentro do ônibus onde foi entrevistado.




Ele lembra que, no presídio onde trabalhou, 2003 foi um dos piores anos que viveu. Lucas estava dentro da cadeia quando ouviu um barulho na inclusão, local da cadeia aonde chegam os presos para ser revistados. Alguns funcionários grita-vam, era um motim. Os presos invadiram o espaço e tentaram tomá-lo. Lucas estava próximo, e um dos que se rebelaram partiu com uma faca para cima dele e pediu a chave. Na hora, ele não entregou e foi para cima do preso. Os dois iniciaram uma luta corporal.




Dois funcionários chegaram para ajudar e conseguiram render o preso. Essa briga aconteceu também com outros presos e outros trabalhadores ao mesmo tempo. No final, os ASPs conseguiram conter o tumulto, mas todos – presos e agentes – saíram machucados. Depois, levantaram a ficha dos que promoveram o motim e viram que eram presos que tinham pertences para receber. Revistaram tudo com calma e, em pacotes dos Correios, estavam guardados revólveres carregados. “Se eles tivessem vencido a briga e pego a encomenda, muita gente teria morrido naquele dia”, explica Lucas.




Desequilíbrio comprovado




Estudos acadêmicos apontam que o agente de segurança penitenciária sofre ônus psíquico e identitário, pois na cadeia os guardas precisam compreender tanto a dinâmica do ambiente como a dos presos. No artigo intitulado A identidade e o papel de agentes penitenciários, escrito em julho de 2013, para a Universidade de São Paulo, o doutor em sociologia e mestre em antropologia Pedro Rodolfo Bodê de Moraes relata o que um ASP lhe disse em entrevista quanto à adaptação no interior das prisões: “A gente começa a falar como presos, vestir como preso e vira uma extensão do preso”.




Segundo o diretor de saúde do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (Sifuspesp), Luiz da Silva Filho, conhecido como “Danone”, a situação é complicada dentro e fora das cadeias. “Temos um clima de insegurança permanente e faltam funcionários porque alguns morrem, outros adoecem ou se aposentam. O maior índice de afastamento é por problemas psicológicos”, aponta.




O psicólogo Arlindo Lourenço da Silva trabalha há 23 anos na Penitenciária José Parada Neto, de Guarulhos. Entre 2000 e 2002 foi um dos responsáveis por implementar a Política de Saúde dos Trabalhadores na Escola de Administração Penitenciária (EAP) de São Paulo. Como doutor em psicologia desenvolveu pesquisa na USP, a partir do levantamento e da sis-tematização de óbitos de agentes no Estado de São Paulo, que conclui que a maioria dos ASPs vive, em média, entre 40 e 45 anos. A morte tem relação direta com o ofício que desenvolvem. Diabetes, hipertensão, ganho de peso, estresse e depressão são alguns exemplos das doenças ocupacionais, somadas às péssimas condições de trabalho, a momentos de rebelião e a dificuldades de modificar o local onde atuam.




Nesses últimos três anos, afastado do trabalho, o agente penitenciário Lucas é categórico em afirmar que a cadeia deixará nele cicatrizes para o resto da vida. Segundo ele, ela é um lugar onde se entra e já se sofre um impacto. “O cheiro é totalmente diferente, de mofo, e causa arrepio.” Lucas e Guaracy, que são amigos, afirmam que o sistema prisional é cruel tanto para os funcionários quanto para os sentenciados.

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